A questão nuclear no Brasil

Artigo solicitado pelo movimento francês "Sair do nuclear", a ser por ele publicado proximamente na versão em francês.

A questão nuclear no Brasil

Chico Whitaker [1]

A manipulação da energia atômica ganhou corpo no Brasil na dinâmica da Guerra Fria, dez anos depois das potências mundiais terem entrado na corrida armamentista que se seguiu aos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. Seu primeiro “Instituto de Energia Atômica” foi criado em 1956, três anos depois do lançamento do programa “Átomos para a Paz” por Eisenhower.

Este programa já era uma manobra política, na incerteza do que ocorreria na União Soviética depois da morte de Stalin, para reduzir a bomba atômica a uma arma de dissuasão mas também continuar a pesquisar a energia do átomo. Para os militares do Brasil, no entanto, em sua pretensão de fazer seu país entrar no clube das grandes potências, o objetivo era mesmo a bomba.

Depois que tomaram o poder com o golpe de 1964, até cavaram poços para testes nucleares. Estes só foram fechados em 1991, dez anos depois do fim do regime militar, encerrando a aventura. Do sonho da bomba passaram então à construção de submarinos nucleares – depois de comprar da França um primeiro exemplar – e de usinas de produção de energia elétrica. A Comissão Nacional de Energia Atômica criada em 1959 é ainda hoje presidida por um almirante.

O regime militar lançou um programa de construção de usinas somente em 1971. O primeiro projeto desse programa foi iniciado no começo da década de 80, no sul do Estado de São Paulo. Com os argumentos enganosos de sempre (progresso, empregos) e a desinformação geral, ganhou o apoio dos políticos locais e de parte da população, mas enfrentou contestações. Um dos cooptados disse a um opositor: Não se preocupe com os efeitos letais da usina. Um dia todos teremos que morrer... Esse projeto entretanto não vingou.

O mesmo não ocorreu em Angra dos Reis, onde começou a ser operado em 1983 um reator da americana Westinghouse, acusada pouco antes de subornar o ditador Marcos, nas Filipinas, para vender seu “ferro velho”. O equipamento era no entanto tão precário que suas frequentes interrupções fizeram com que logo fosse chamado de “vagalume”: acende/apaga…

A tentativa seguinte – o projeto Angra II – foi mais bem sucedida, apoiada num acordo com a Alemanha, que contornou dessa forma a proibição de desenvolver sua tecnologia de enriquecimento do urânio. Mas as duas usinas produzem hoje somente 1,5% da energia elétrica brasileira – muito menos portanto do que se passa em outros países, como na França. A pressão do lobby nuclear levou assim o governo brasileiro à decisão de construir Angra III, sempre com o apoio alemão e já agora com a participação da empresa francesa AREVA.

Angra III sofreu entretanto um duro golpe com o acidente de Fukushima. Reavivando a memória de Chernobyl e fazendo saltar aos olhos do mundo o risco que as usinas carregam consigo, o acidente levantou dúvidas sobre o acerto da decisão de construí-la.

Mas, para surpresa geral, quando ainda se vivia o impacto emocional do acidente, o Ministro das Minas e Energia do Brasil reafirmou a decisão de não somente terminar Angra III como construir outras quatro usinas no Nordeste. E a desfaçatez continuou, como ficou demonstrado com a publicação num grande jornal, um ano depois, de artigo de um alto funcionário da empresa que administra as usinas brasileiras, com o incrível titulo “Japão mostrou que energia nuclear é segura”...[2]

Esse quadro já tinha levado cidadãos envolvidos em lutas ambientais ou “acordados” por Fukushima a criar, coincidentemente na mesma data[3], em São Paulo, a Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares [4] e, no Rio de Janeiro, a Articulação Antinuclear Brasileira[5]. Esta incorporou em sua atuação a questão da mineração do urânio, já considerada por entidades que a integravam.

Apoiadas nos estudos de Cientistas brasileiros não cooptados pelo lobby nuclear, que mostravam que o Brasil dispunha de suficientes fontes de energia para não precisar da energia nuclear, a Coalizão e a Articulação logo lançaram conjuntamente uma Iniciativa Popular de Emenda à Constituição, para interditar novas usinas nucleares e desmontar as existentes.

A participação legislativa popular, criada na Constituinte de 1988, já demonstrara sua eficácia com a aprovação de leis como a da Ficha Limpa, em 2010, contra a corrupção. Com a inclusão do tema nuclear na pauta da próxima Assembleia da Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB, a adesão desta entidade, historicamente ligada às lutas sociais brasileiras, poderá ser decisiva para o sucesso da Iniciativa Popular, como já ocorreu com as Iniciativas de leis contra a corrupção.

Esse instrumento de participação estimula as pessoas a se informarem – o que é essencial num caso como o do nuclear, sempre cercado, em todo o mundo, de segredo e informação distorcida. Mas é uma ação de longo prazo, ao exigir a adesão de 1% do eleitorado (1 milhão e meio de assinaturas) à proposta de lei. A Coalizão e a Articulação começaram portanto também a lutar diretamente pela interrupção da construção de Angra III.

Implantadas na praia de Itaorna, que na língua indígena local quer dizer “pedra podre”, Angra I, II e III estão a 15 quilômetros de uma cidade de 170.000 habitantes. E a pouca distância de duas grandes capitais brasileiras – Rio de Janeiro e São Paulo – que, no caso de um acidente, podem ser facilmente alcançadas por nuvens radioativas como as que se desprenderam de Chernobyl e cobriram toda a Europa.  

Com a AREVA contratada para a implantação dos reatores comprados da Siemens, o governo brasileiro contava com o financiamento de bancos europeus, garantidos pela empresa de seguros alemã Euler Hermes.

Quando porém, após Fukushima, o governo alemão decidiu interromper seu programa de usinas e a Siemens fechou seu setor nuclear, movimentos ambientalistas da Alemanha questionaram a “dupla moral” do seu governo, se autorizasse a Garantia Hermes: o que é ruim para os alemães – usinas nucleares – é bom para os brasileiros? Entidades e personalidades do Brasil e da Europa se associaram ao questionamento, e o parlamento alemão, a quem caberia aprovar a concessão da Garantia, decidiu postergar sua decisão. Os bancos financiadores não se satisfizeram com as explicações dadas pelo Brasil sobre a segurança das usinas e a decisão não foi tomada até agora.

Sem dúvida foi uma vitória da luta antinuclear. Mas ainda falta impedir que o governo brasileiro, para cobrir a retirada dos bancos europeus, desvie recursos de seus bancos de fomento para Angra III, que é o que lobby nuclear já está anunciando, com toda a sua prepotência…

Várias outras iniciativas estavam sendo tomadas, como as caravanas de informação aos municípios escolhidos para receber novas usinas, semeando sementes de protesto; as manifestações em várias cidades em 11 de março de 2012, primeiro aniversário do acidente de Fukushima, propostas pela rede “Sair do nuclear”, com sua “corrente humana”; a tenda antinuclear na Cúpula dos Povos, paralela à Conferência oficial das Nações Unidas da Rio+20, com testemunhos de Fukushima, palestras e assinaturas na Iniciativa Popular; a exibição de filmes sobre o nuclear pela ONG Uranium Film Festival[6], que realiza eventos de mesmo tipo também em outros países, como recentemente na Índia.

O desastre de Fukushima relembrou no entanto aos brasileiros outro acidente, que abriu uma nova dimensão na sua luta antinuclear: em 1987, em Goiânia, perto de Brasília, 19 gramas de césio-137, retirado por vendedores de ferro velho de um aparelho de radioterapia abandonado, se espalharam pela cidade. Esse pó altamente radiativo matou em um mês mais de sessenta pessoas, contaminou outras 600 inclusive provocando amputações, e atingiu com suas radiações mais de 6 mil. E 13.500 toneladas de lixo atômico, com as roupas e objetos pessoais das vitimas, as ferramentas usadas no desmonte de suas casas e o material resultante do desmonte foram enterradas num depósito a ser mantido fechado por 180 anos. Para completar, a “Associação das Vítimas do Césio 137”, criada após o acidente, denunciou o abandono das vítimas pelo poder público…  

Vinte anos depois desse acidente uma Comissão da Câmara dos Deputados verificou o controle do governo sobre o uso e descarte de fontes radioativas, como a abandonada em Goiânia, e constatou a insuficiência desse controle.

O perigo da radioatividade, criado voluntariamente pelo homem, está mais próxima da experiência dos brasileiros. E permite compreender facilmente mais esse risco de Angra, com os elementos altamente radioativos contidos nas varetas de combustível usado de urânio, retiradas dos reatores e armazenadas provisoriamente em piscinas de resfriamento, sem que o governo saiba que destinação final lhes dar.

Por isso a Coalizão e a Articulação realizarão uma oficina no próximo Fórum Social Mundial, na Tunisia[7], sobre o tema: Os efeitos da radioatividade no ser humano (espalhada por bombas atômicas, testes nucleares, na mineração do urânio, por munições de urânio, por acidentes em usinas nucleares, com fontes radioativas “pacíficas” e com lixo atômico).[8]

O ano de 2013 deverá ser de intensa atividade dessas duas organizações. A luta é enorme, frente ao poderio do lobby nuclear. Mas a esperança é ainda maior, porque se insere numa luta mundial pela sobrevivência da Humanidade.

11/02/2013                        


[1] Da Comissão Brasileira Justiça Paz e da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares

[2] Folha de São Paulo de 19 de março de 2012

[3] 3 de maio de 2011

[8] Maiores informações: coalizaosp@brasilcontrausinanuclear.com.br

 

 

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