Publicado em 07 de janeiro de 2001 na Folha de São Paulo.
CLAUDIO ANGELO
enviado especial da Folha a Cherbourg
Junte os negócios bilionários das indústrias de energia atômica de três países ricos, a oposição cerrada da ONG ambientalista Greenpeace e um navio carregado com 77 toneladas de lixo atômico singrando o litoral da América do Sul. Adicione uma nota formal de protesto por parte de quatro governos sul-americanos preocupados com a possibilidade de um desastre ecológico e você terá uma idéia do quiproquó causado pelo navio Pacific Swan ao passar pelo continente.
Apelidado de “Tchernobil flutuante” pelo Greenpeace, o navio atravessou a costa brasileira semana passada sem nenhum problema. Mesmo se manifestando oficialmente contra a passagem, o governo federal nada pôde fazer.
O Brasil tem 12 milhas de mar territorial e 200 milhas de zona econômica exclusiva. A Convenção do Mar estabelece o Direito Inocente de Passagem, segundo o qual um navio pode transitar livremente pela zona exclusiva desde que não aporte ou exerça atividade econômica.
Segundo a Cogema, a estatal nuclear francesa, a embarcação está agora entre Uruguai e Argentina.
O barco deixou o porto de Cherbourg, na úmida Normandia -o mesmo onde o Titanic fez sua última escala antes de ir a pique, em 1912- em 19 de dezembro.
Em meados de fevereiro, deverá atingir seu destino final -o porto de Rokkasho Mura, no Japão, país dono da carga radioativa composta de césio 137 e mais de uma dezena de outros elementos, imobilizados em uma matriz de vidro.
Mas enganam-se os governos brasileiro, uruguaio, argentino e chileno se acharem que a confusão atômica acaba por aqui. Um contrato assinado por França, Reino Unido e Japão para o reprocessamento e o transporte do combustível gasto nas usinas nucleares nipônicas prevê pelo menos um carregamento por ano de resíduos entre a Europa e o Japão durante a próxima década.
Alguns fatalmente passarão pela América do Sul, seguindo uma das três rotas para esse tipo de transporte (veja quadro ao lado).
Não bastasse isso, as estatais de energia nuclear do Reino Unido e da França também começaram, em 1999, a devolver ao Japão o combustível reprocessado, pronto para uso. A carga é ainda mais delicada que o lixo nuclear, por conter plutônio -a matéria-prima das bombas atômicas. Incluam-se aí também pelo menos mais dez viagens.
A boa notícia, no caso dos resíduos, é que o risco de acidente com contaminação ambiental é pequeno, mesmo que o navio afunde.
“A matriz de vidro tem reatividade muito baixa e pode conter os resíduos de uma forma razoavelmente segura, sem dispersão no ambiente marinho”, afirmou à Folha o cientista de materiais Kurt Sickafus, do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA.
“Além do mais, não acredito que os recipientes fossem se dissolver”, afirmou Sickafus, cujo trabalho é desenvolver matrizes de vidro capazes de conter a radiação de forma mais eficiente.
O pesquisador, no entanto, se preocupa com a possibilidade de esse transporte virar corriqueiro. “Seria complicado recuperar o material no fundo do oceano.”
O Greenpeace vê ainda risco de sabotagem ou de atentado terrorista aos barcos com o combustível novo. “Eles levam até 200 kg de plutônio. Com 6 kg se faz uma bomba atômica”, disse o coordenador da campanha antinuclear da ONG no Brasil, Ruy de Góes.
Nem a inauguração de uma usina de reprocessamento de combustível nuclear em Rokkasho Mura, prevista para 2005, deve reduzir a dependência japonesa dos cruzeiros atômicos para atender suas necessidades energéticas.
“A usina só vai dar conta de metade do combustível gasto pelos 30 reatores nucleares japoneses”, disse Graham Bates, da BNFL (Combustíveis Nucleares Britânicos Ltda.), que administra a frota à qual pertence o Pacific Swan.
Além do mais, o país tem planos para ampliar a oferta de energia termonuclear dos atuais 35% para 50% nos próximos 30 anos.
Outro problema é a falta de seguro ambiental que cubra os prejuízos de uma eventual contaminação. Para Catherine Tissot-Colle, diretora de desenvolvimento da Cogema, o seguro não é necessário porque o transporte e o acondicionamento dos resíduos é feito de acordo com normas da Aiea (Agência Internacional de Energia Atômica), que prevêem indenizações em caso de acidente.
“Talvez essas regras devam ser endurecidas, mas elas foram assinadas por mais de 140 países e todos estavam de acordo”, disse.
A França, que tem no currículo nuclear manchas como os testes de armas no atol de Mururoa nos anos 90, resolveu abrir suas instalações de reprocessamento em La Hague, perto de Cherbourg, à visita de especialistas estrangeiros.
De tanto levar pedrada, também investiu em tecnologia para o transporte intercontinental do lixo nuclear. A estatal adotou o lema “Nous n’avons rien à vous cacher” (nós não temos nada a esconder), visto em cartazes espalhados pela usina de La Hague.
Quer dizer, quase nada. A rota do próximo lote de combustível reciclado permanece segredo, justificado por razões de segurança.