Publicado em 9 de fevereiro de 2014 no O Globo.
- Trabalho de limpeza de usina nuclear conta com indigentes recrutados pela máfia japonesa
TÓQUIO – Quase três anos depois da tsunami que causou o acidente de Fukushima, a maior operação de descontaminação nuclear da História não tem prazo para terminar. A desativação da usina deve durar mais de três décadas, enquanto a remoção de terra e escombros das cidades contaminadas está atrasada. A limpeza sem precedentes conta com o reforço de trabalhadores que nem sempre entendem o perigo da radiação ou recebem pagamento adequado para tarefas que ninguém quer fazer. No complexo sistema de contratação da mão de obra de Fukushima, o crime organizado encontrou espaço, explorando alvos fáceis e despreparados, como moradores de rua.
Para viabilizar a descontaminação — uma operação de US$ 150 bilhões custeada pelo governo — a Tokyo Electric Power (Tepco), operadora da central de Fukushima, depende de uma cadeia de empreiteiras, que por sua vez usam agências e subagências para recrutar operários. O alto da pirâmide não tem controle total sobre a base. O esquema, que envolve centenas de empresas dentro e fora da usina, permitiu a infiltração da Yakuza, a poderosa máfia japonesa. Homens que caem nessa rede aceitam o emprego sem saber exatamente onde vão trabalhar. Tampouco recebem integralmente o salário prometido.
No ano passado, mafiosos foram presos por efetuarem contratações ilegais em Fukushima. Um dos acusados confirmou que sua missão era reunir desempregados que dormiam ao redor da estação de trem de Sendai, na região de Tohoku, onde a tsunami ocorreu, e enviá-los a Fukushima. Os sem-teto deveriam remover o solo e destroços contaminados, por um pagamento abaixo do estipulado pela Tepco.
Ciganos nucleares, velha tradição
Não há consenso sobre os efeitos da exposição a pequenas doses de radiação, mas todos os trabalhadores devem passar pelo monitoramento dos índices de contaminação e os que ultrapassam os limites permitidos são dispensados. Acusada de pagar muito pouco, a Tepco — que não está conseguindo preencher todas as vagas — aumentou o salário mínimo para US$ 200 por dia no final de 2013. Mas como o sistema envolve milhares de pessoas e diferentes níveis de empregadores, o controle das condições de trabalho é vulnerável.
— Dentro da usina há mais de três mil homens trabalhando sob altos índices de contaminação. Alguns não recebem os cuidados e compensações que deveriam. Muita gente perdeu seus empregos e não tem outra alternativa — diz Ruiko Mutoh, moradora de Koryama, uma das comunidades que viraram cidades fantasmas depois da tragédia nuclear.
Ruiko era dona de um pequeno café, obrigado a fechar as portas no rastro da catástrofe de março de 2011. Ela encabeça um grupo de moradores que move ação criminal contra a Tepco pelos danos causados a 160 mil pessoas expulsas de suas casas.
Os chamados “ciganos nucleares” — mão de obra barata e temporária usada para funções menores nas usinas — são uma peça antiga da indústria nuclear no Japão, erguida a partir dos anos 70. A situação dos “ciganos” nunca mereceu muita atenção, mas o drama de Fukushima trouxe à tona um quadro sombrio.
Em meio ao caos que se seguiu ao terremoto, quando a usina entrou em colapso, era preciso achar operários às pressas. As agências de emprego começaram a enviar trabalhadores para a Tepco, sem muito controle. O alto risco da tarefa fez que a empreitada só fosse atrativa para quem não tinha outra oportunidade possível de emprego — indigentes, pessoas endividadas, aposentados que não conseguem se sustentar. O jornalista freelancer Yomohiko Suzuki, se candidatou para tentar apurar o que se passava dentro da central. Foi contratado como empregado temporário e, entre julho e agosto de 2011, registrou os bastidores de Fukushima. Ele classificou a luta para desaquecer os reatores como uma sentença de morte. No livro que publicou sobre a investigação, Suzuki confirmou que havia empregados agenciados pela Yakuza.
— A influência da máfia aumentou após o acidente, mas ela não teve que forçar sua presença. Já atuava na região antes da tragédia — explicou.
Os recrutados só recebem pelos dias que trabalham, sem seguro de saúde ou compensação pelos dias em que ficam doentes. Além disso, ficam apenas com uma parcela do salário, muitas vezes a menor — o resto vai para as mãos das agências recrutadoras ou a Yakuza.
O Centro de Informação Nuclear do Cidadão (Cnic, na sigla em inglês), ONG que reúne especialistas em radiação, defende que o governo e a Tepco se responsabilizem diretamente pelo monitoramento da saúde dos trabalhadores, garantindo o pagamento de seguros. No Japão, a dose de radiação máxima permitida para empregados do setor é de 50 millisieverts por ano. Se esse limite é ultrapassado, eles são dispensados. Mas os “ciganos” dispensados podem acabar sendo recontratados, através de outras agências — e a escassez de mão de obra para o trabalho pode acabar levando a vista grossa em relação às violações de segurança.
— A Tepco dá instruções sobre os perigos da exposição excessiva, mas trabalhadores que já assistiram a essas palestras contaram que são apenas protocolares. Eles não aprendem nada — diz Hajime Matsukubo, um dos porta-vozes da Cnic.
As vítimas, porém, muitas vezes parecem aceitar a situação, que consideram uma melhora em relação às suas condições de vida anteriores. É o caso de Shizuya Nishiyama. Depois de passar a vida trabalhando na indústria da construção civil, já não conseguia emprego aos 57 anos. Vivia como sem teto na estação de Sendai até ser recrutado para trabalhar em Fukushima.
— Não me arrependo. Tomam parte do seu salário e a situação é difícil, mas é melhor ser um trabalhador nuclear do que dormir na rua em pleno inverno e sem comida — disse ele, que hoje ajuda a recrutar novos voluntários para a limpeza.