Publicado em 9 de fevereiro de 2013 no O Globo.
Pressão vem da necessidade de uso cada vez maior de usinas térmicas, percebida neste verão
BRASÍLIA — Passados quase dois anos desde o acidente de Fukushima, no Japão, o governo voltou a discutir a instalação de novas usinas nucleares no Brasil, pressionado pela necessidade de uso cada vez maior de usinas térmicas, percebida neste verão. A última edição do Plano Nacional de Energia (PNE), de 2007, indicou a construção de quatro novas usinas nucleares, mas depois do vazamento no Japão, em março de 2011, o assunto foi parar na gaveta. Agora, quando ficou nítido que as hidrelétricas já não dão conta da necessidade contínua de fornecimento do país, a ideia ressurgiu acompanhada do debate sobre como empresas privadas poderiam ser sócias da Eletrobras Eletronuclear nesses novos empreendimentos. Para que isso ocorra, será preciso mudar a Constituição e quebrar o monopólio da União nesse segmento.
Ainda este ano deve ser publicado um novo PNE, que vai apontar as necessidades brasileiras de abastecimento até 2050, abrindo espaço para a ampliação dessas usinas. Hoje, o único empreendedor de usinas nucleares no Brasil é a Eletrobras Eletronuclear, que contrata consórcios para serviços específicos que não se relacionam à operação da usina e ao domínio do ciclo do combustível. É com uma mudança na Constituição que o governo vislumbra a possibilidade de abrir espaço para o setor privado nesse setor, suprindo a escassez de crédito internacional para o segmento nuclear após o acidente de Fukushima, que acabou prejudicando até a construção de Angra 3.
— Há um entendimento de que a iniciativa privada pode participar em algumas etapas do Programa Nuclear Brasileiro (PNB). Precisamos adaptar nossa legislação, porque a experiência brasileira dos últimos anos de construção de usinas e linhas de transmissão por sociedades de propósito específico (SPE), em que o Estado entra com 49%, e o setor privado, com 51%, foi muito bem-sucedida. No caso da energia nuclear, é uma alternativa que tem de ser considerada. A iniciativa privada ficaria restrita à parte mais convencional da usina e, no ciclo do combustível, continuaria uma política de Estado. Deveríamos começar a discutir isso — disse uma fonte do Ministério de Minas e Energia (MME).
Destino de resíduos ainda é um obstáculo
Particularmente o item 23 do artigo 21 da Constituição, que assegura à União o controle do setor nuclear, inibe potenciais investidores a se associarem ao Estado nessa área, mesmo se convidados. Recentemente, empreiteiras e fornecedores do setor nuclear fizeram chegar ao governo e a parlamentares uma minuta de Projeto de Emenda Constitucional (PEC) para rever esse e outros artigos da Carta, inclusive o que transfere do Legislativo para o Executivo a escolha do local de novas instalações.
O Greenpeace, organização não governamental ambiental que, desde sua origem, faz oposição às usinas nucleares, reconhece que a necessidade de geração de energia no Brasil, no melhor dos cenários de eficiência energética e redução de desperdícios, triplicará até 2050, mas continua a condenar a opção pela energia nuclear.
— O Brasil deve suprir a necessidade futura de energia com uma mistura das fontes disponíveis, exceto nucleares, carvão, diesel e óleo combustível — afirmou Ricardo Baitelo, coordenador de energia do Greenpeace.
O governo já tem claro que serão ampliadas, no PNE, as previsões para geração a partir de biomassa e energia eólica, cujos preços foram reduzidos nos últimos anos, mas entende que outras fontes menos instáveis, como a nuclear, sejam necessárias para manter a segurança do abastecimento. Ao se voltar para 2050, o novo PNE deverá mostrar que a carga deverá crescer até quatro vezes, enquanto o plano anterior, de 2007, apontava uma necessidade de dobrar a geração até 2030.
— O nosso potencial hidrelétrico se esgota entre 2025 e 2030. O Brasil terá de expandir o sistema, principalmente com as usinas térmicas, que hoje são carvão, gás natural e nuclear. Todas as três têm suas dificuldades. Na questão nuclear, as dificuldades são os rejeitos radioativos, a opinião pública, a segurança e o fato de que ela leva dez anos para ficar pronta — disse a fonte.
Esses pontos já têm sido enfrentados pelo governo nos últimos meses. No quesito segurança, por exemplo, depois de tramitar por oito anos, em outubro o governo conseguiu aprovar — sem alarde e prévio conhecimento de opositores — uma renovação do Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro (Sipron), órgão ligado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência e responsável pela prevenção de danos nucleares, assim como pela articulação para socorro diante de um desastre. O texto torna a lei brasileira adequada às cláusulas da Convenção de Segurança Nuclear, assinada pelo Brasil em 1994.
Sobre a demora das construções, a fonte do MME explica que o Brasil pode avançar da tecnologia atual, a PWR, para um modelo que já está em implantação na China e nos EUA, o AP1000. Essa nova tecnologia pode reduzir o prazo de construção de uma usina de dez para até quatro anos, graças a um modelo de montagem modulado. Este implica um custo novo, mas poderia chegar ao país com investidores que já detêm essa tecnologia lá fora.
A destinação dos resíduos nucleares cancerígenos, porém, ainda é um grande obstáculo para o setor. Há discussões no governo sobre a busca de um destino permanente, mas os resíduos de Angra, por exemplo, continuam alojados submersos nas proximidades do complexo energético em caráter temporário. No que se refere à opinião pública, o último dos obstáculos para o governo, o Greenpeace admite que há uma forte volatilidade da população sobre o tema entre um acidente e outro.
— Acredito que isso (destinação dos resíduos) seja definido nos próximos dois anos, mas é um dos maiores problemas, talvez até maior do que os acidentes, porque ainda não há projeção arquitetônica para o destino dos rejeitos — disse Baitelo, do Greenpeace. — Quanto às opiniões, a única constante é a do lobby da indústria nuclear.
O setor nuclear mantém uma rede mundial de troca de informações em defesa do uso do poder atômico. Um dos argumentos é que há 65 usinas em construção hoje, todas com cuidado reforçado após Fukushima. Defendem também que a emissão de carbono é praticamente nula, uma vantagem diante das demais térmicas.
— O país domina a tecnologia, temos a sexta maior reserva de urânio do mundo, e as usinas são seguras, tanto que levei minha família para viver em Angra quando fui trabalhar lá — disse Antonio Müller, presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento das Atividades Nucleares (Abdan).
A entidade defende ainda que o governo retome o projeto de transformação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) em uma agência reguladora. Hoje, a Cnen engloba os papéis de fomentadora e fiscalizadora do setor, o que suscita pedidos de mudanças regulatórias até pela própria comissão.