Carta Aberta aos Presidentes do Brasil e Argentina, e aos senhores ministros e senhoras ministras responsáveis pelas questões nela abordadas

Os signatários desta Carta Aberta – o Movimento Antinuclear da República Argentina (MARA), a Articulação Antinuclear Brasileira (AAB) e organizações ambientalistas e de Direitos Humanos dos dois países – saúdam o reencontro das sociedades argentina e brasileira, na visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Presidente Alberto Fernandez, e confiam em que, a partir de agora, volte a se desenvolver uma colaboração construtiva entre os dois países, na perspectiva da Paz entre as nações de todo o mundo.

Algumas notícias sobre o encontro tiveram, no entanto, uma repercussão negativa junto a pessoas e organizações que se ocupam de determinados temas no Brasil e na Argentina e dos problemas a eles vinculados, bem como de suas repercussões na vida da população. Esse desconforto já foi objeto de Carta enviada pela Articulação Antinuclear Brasileira ao Presidente Lula e a alguns de seus Ministros, da qual alguns trechos são retomados na presente Carta.

Os temas que causaram mais desconforto foram o do gasoduto para transportar gás de folhelho (também conhecido como gás de xisto) a partir da Patagônia até Buenos Aires, podendo depois alcançar o Brasil, e o dos acordos em discussão para desenvolver o uso da tecnologia nuclear na geração de eletricidade.

Pareceria que os dirigentes máximos de nossos países optaram por tomar decisões sem consultar previamente aquelas pessoas e organizações que, em nossas sociedades, estudam e acompanham de perto as dúvidas e consequências das correspondentes políticas públicas. Mas isto não se esperaria especialmente do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sua eleição, em novembro de 2022, resultou de um enorme esforço de grande parte da sociedade brasileira para afastar a ameaça de que nosso país mergulhasse definitivamente em um regime de exceção, como prometia e ansiava Jair Bolsonaro, o pior governo e o pior Presidente que a História brasileira conheceu.

Em torno da sua candidatura reuniram-se partidos, políticos, movimentos sociais, grupos econômicos, cidadãs e cidadãos que acreditam que a Democracia, apesar de suas imperfeições, é o único sistema que permite a uma sociedade buscar seus rumos futuros de forma coletiva, pacífica e eficiente. Com o resultado das eleições firmou-se que somente a Democracia nos conduz a decisões mais inteligentes e mais consensuais. Por isto mesmo, foram esses os compromissos da campanha eleitoral de Lula e de seu discurso de posse. E depois do atentado antidemocrático de 8 de janeiro, após a sua posse, essa união se consolidou e se ampliou ainda mais, com o anuncio da solidariedade corresponsável de todos os Poderes de Republica.

Seria, portanto, muito penoso se o Presidente Lula passasse a tomar decisões com importantes repercussões no presente e no futuro do país a partir somente a partir dos seus conhecimentos e experiências próprias e dos integrantes de seu governo, sem consultar democraticamente a sociedade. E seria também uma grande contradição com os próprios esforços que seu governo já está multiplicando, pela participação popular na definição de nossos destinos.

No caso do gás de folhelho, a sociedade brasileira já reagiu, e imediatamente, com uma carta enviada ao Presidente e alguns de seus ministros pelo Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental – PROAM, assinada por dezenas de especialistas. Eles lembram que em todo o mundo são denunciados os “altos riscos e fortes impactos ambientais” da fragmentação de rochas, o chamado “fracking”, necessário à extração desse gás. Ao provocar a contaminação dos aquíferos, essa tecnologia é “ambientalmente inadequada e já banida em países mais progressistas” (citando a carta), assim como em vários Estados do Brasil. Ademais, há registros de confrontos com as comunidades indígenas Mapuche, que se opõem ao “fracking”. Coerentemente com as iniciativas que estão sendo tomadas no Brasil frente aos crimes do governo anterior contra nossos povos originários, nós brasileiros nos solidarizamos com os povos originários argentinos no tratamento da questão do gás de folhelho, assim como os argentinos se solidarizam com os povos indígenas brasileiros encurralados por grandes empresas agropecuárias, florestais, de mineração e represas.

No caso do uso da energia nuclear para produzir eletricidade, esta questão nunca deixou de ser assunto polêmico, no Brasil, na Argentina e no mundo. Essa tecnologia é derivada da tecnologia da bomba atômica – a arma mais poderosa de destruição em massa criada pelos seres humanos. Depois de empregadas pela primeira vez em 1945, ficou evidente que um país que tivesse bombas atômicas passaria a impor seus interesses aos demais. Isto levou muitos países a uma corrida armamentista – entre os quais estavam o Brasil e a Argentina – ao mesmo tempo que surgia um esforço internacional para evitar novos crimes como os de Hiroshima e Nagasaki, entre outras coisas porque levariam a um apocalipse nuclear. Em 1957 foi criada a Agencia Internacional de Energia Atômica – AIEA, cuja principal função era evitar a proliferação dessas armas. Um Tratado de Não Proliferação, o TNP, foi assinado na ONU em 1968 mas nem todos os países o subscreveram – entre eles Brasil e Argentina. A Índia e o Paquistão, países vizinhos, também não o assinaram. A primeira bomba indiana foi testada em 1974. O Paquistão, derrotado em guerra contra a Índia em 1971, no ano seguinte começou a fabricar sua bomba, de que atualmente dispõe. Esses países vivem até hoje um terror atômico mutuo.

Sabemos que Brasil e Argentina tiveram mais sorte. A corrida pela “bomba brasileira”, iniciada em 51 e mais estruturada com a ditadura militar imposta em 1964, foi interrompida pelo Presidente Collor de Mello, que em 19 de setembro de 1990 fechou simbolicamente os poços para os testes, na serra do Cachimbo (Pará), preparados secretamente. Na mesma década de 1990, Brasil e Argentina assinaram o TNP e, em 1991, subscreveram um acordo “para o uso exclusivamente pacifico da energia nuclear” (12 de dezembro de 1991). Como resultado desse acordo foi criada a Agencia Brasileiro-Argentina de Controle e Contabilidade de Materiais Nucleares (ABACC), que assegura a fiscalização mutua.  Dois instrumentos bloquearam finalmente qualquer tentativa armamentista nuclear: a Argentina, o Brasil, a ABACC e a AIEA firmaram um acordo para a aplicação de salvaguarda, e um maior controle dos respectivos programas nucleares (1994), e ambos os países subscreveram, também em 1994, o Tratado para a Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe (Tratado de Tlatelolco).

Vemos no entanto, agora, que os riscos de uma terceira guerra mundial e do apocalipse nuclear ressurgem claramente com a guerra na Ucrânia, que obriga a que se multipliquem os esforços para que se chegue efetivamente, nessa guerra, a um acordo de paz. Mas nossa preocupação com acordos dos nossos Presidentes na área nuclear não visa a “arma das armas”. Ela visa sua descendência: as usinas nucleares para produzir eletricidade.

Isto porque essa segunda utilidade dada à energia nuclear, menos insana que a da bomba, é também carregada de problemas, apesar de ter sido apresentada ao mundo como pacifica, em 1953, pelo Presidente dos Estados Unidos, com grande pompa nas Nações Unidas. É nos acordos que possam ser celebrados entre o Brasil e a Argentina nessa área que são levantadas muitas dúvidas.

Duas delas tem a ver com as bombas: a primeira é que as usinas nucleares se tornaram o caminho mais curto para fabricar bombas (isso aliás é o que leva a AIEA a seguir atentamente os processos de enriquecimento de uranio supostamente para usinas, e ao esforço pela não proliferação); a segunda é o fato das usinas produzirem também, escondido no seu “lixo”, o plutônio, um subproduto extremamente valorizado militarmente: no teste feito em Nagasaki verificou-se que este elemento radioativo é o melhor combustível para bombas. Ora, nos tempos incertos que vivemos, tudo se torna possível.

Preocupa, portanto, uma possível intenção conjunta de continuar a construção de grandes reatores nucleares para produzir eletricidade. No caso da Argentina foram firmados contratos com a China para a construção do reator nuclear Hualong One, que tem uma escassa experiencia de funcionamento. No Brasil, além de seguir a construção de Angra 3, com um projeto denunciado como obsoleto, anterior ao primeiro grande acidente nuclear de Three Mile Island, busca-se estender a vida útil de Angra 1 e de Angra 2. Em ambos os países se continua a tomar decisões sem uma avaliação prévia de impacto ambiental e sem consultas públicas.

Preocupa-nos igualmente a construção em ambos os países de “Pequenos Reatores Modulares”, o SMR de até 300 MW de potência, por exemplo o CAREM-25 na Argentina. Estas novas instalações, contrariamente ao que é indicado pelo Lobby nuclear, permitiriam o desenvolvimento de grandes centrais nucleares pela agregação de unidades (a chamada modularidade de escala). Também criam problemas pela quantidade de resíduos que produzem e suas características especiais. Ao aumentar a concentração de plutônio 239 e uranio 235 no combustível nuclear esgotado, numeroso autores indicam que aumentam os riscos (“recriticidade”).

Qual o real objetivo dessa política, quando se sabe que a energia nuclear é muito cara, ineficiente e a mais perigosa diante do desenvolvimento de outras formas de produzir eletricidade, como a eólica e solar, que abrem novas possibilidades frente à escassez de recursos e à exigência de outros gastos para assegurar uma vida digna a todos os cidadãos e cidadãs de nossos países?

E são ainda mais preocupantes dois outros problemas: o risco de eventos e acidentes graves – raros, mas possíveis, tanto com grandes reatores como com pequenos – e a questão da disposição final do combustível usado, e das peças radioativas dos reatores desativados.

Com a cultura do segredo e do autoritarismo herdada do mundo militar, onde as usinas nasceram, as decisões sobre usinas são tomadas de cima para baixo, sem consulta à sociedade e menos ainda às populações que seriam prejudicadas pelas ameaças que essa tecnologia carrega consigo mesma, baseadas na fissão do urânio, e do urânio-plutônio. Mantidos, em nossa imensa maioria, extremamente desinformados a respeito, pouco sabemos dos males que a radioatividade descontrolada pode provocar, por muitas gerações. E muitos de nós nem imaginamos como funcionam as usinas nucleares de produção de eletricidade. Nelas não se passa nada de mágico ou muito espetacular tecnologicamente: a fissão de átomos de urânio que se processa nos reatores nucleares serve somente para esquentar água com o calor assim produzido, de forma controlada, para que o vapor sob pressão então obtido movimente turbinas, que são o que de fato produz eletricidade, como em qualquer outra usina hidráulica ou termoelétrica.

Mas, quando se perde o controle do calor produzido nos reatores em que os átomos são cindidos, ele pode provocar o derretimento do núcleo do reator. Poucos sabem que um acidente desse tipo, cujas consequências fazem com que se situe no nível mais alto da escala de gravidade de eventos usada pela AIEA (nível VII na escala do INES-AIEA), foi durante muitos anos considerado impossível. Até que, por erros humanos de operação combinados com falhas de funcionamento de aparelhos de controle, o primeiro acontecesse em 1979, nos Estados Unidos (Three Mile Island). Seguiu-se outro de mesmo tipo, mas mais violento em Chernobyl, na ex-União Soviética, em 1986, também por um erro humano, e outro em Fukushima, no Japão em 2011, causado por terremotos e tsunamis.

Este tipo de acidente passou então a ser considerado uma catástrofe, porque pode afetar comunidades que se encontrem em um raio de 500 a 700 quilômetros em torno do reator acidentado, com a dispersão de partículas radioativas por explosões e pelo vento. Aquelas carregadas pela nuvem de Chernobyl cobriram toda a Europa, expondo centenas de milhares de pessoas a baixas doses de radioatividade. E sabemos, desde as conclusões publicadas pelas Academias de Ciências dos Estados Unidos, que qualquer nível de radiação ionizante é um risco para a saúde humana (BEIR VII Fase 2).

Trata-se ademais de contaminantes insidiosos, porque, além de provocar cânceres de forma imediata, também podem fazê-lo demoradamente. E o pior acidente, o pior evento possível (por exemplo o choque de um avião comercial de grande porte contra os reatores nucleares e seus depósitos de combustível nuclear esgotado, altamente radioativo), pode ocorrer em cada um dos reatores nucleares de potência que funcionam em nossos países,

Nossas populações não estão preparadas para enfrentá-lo, nem as operações previstas para isso. Faltarão equipes médicas e infraestrutura sanitária equipadas. E pode vir a ser necessária a evacuação de grande número de pessoas para áreas distantes do local do acidente. Em Fukushima o então primeiro Ministro do Japão temia a necessidade de evacuar os milhões de habitantes de Tóquio, o que para ele significaria o fim do seu país.

Quanto ao problema do combustível usado das usinas e o do descarte de suas peças radioativas, que perdem sua radioatividade somente em milhares de anos, as soluções com que se conta ainda são provisórias, com depósitos húmidos ou secos. Estes são precários e podem também sofrer acidentes que liberem grandes quantidades de material radiativo ano meio ambiente. Esta é na verdade a grande dor de cabeça dos países que têm usinas nucleares. Pouquíssimos até agora conseguiram encaminhar uma solução definitiva, como a Finlândia. Este país está construindo, desde 2004, galerias a 430 metros de profundidade, onde manterá esse “lixo” escondido da curiosidade humana e da cobiça ignorante por 100.000 anos (ou “pela eternidade”, como dizem os finlandeses?…). Será realmente uma solução? E qual de nossos países dispõe de recursos para enfrentar esse desafio?

Para concluir, informamos que ativistas antinucleares do Brasil e da Argentina estão preparando conjuntamente um Fórum Social Mundial Antinuclear, a se realizar em Buenos Aires em 2024, em que pessoas engajadas nessa luta em todo o mundo se reunirão para discutir como bloquear esses usos insanos da energia nuclear – uma descoberta que não merece admiração mas sim condenação, porque continua a ameaçar gravemente todas as populações desavisadas do planeta, ao nele implantar artificialmente elementos radioativos que não se encontram na natureza, e que podem afetar milhares de gerações futuras.

Acreditamos que nossos Presidentes estão empenhados para valer na defesa da Democracia, da Justiça Ambiental e da Paz. O que reivindicamos é que não assumam compromissos nem invistam recursos em tecnologias tão perigosas; e que, se pretenderem fazê-lo, a decisão seja antecedida por um amplo debate com nossas sociedades, que se façam previamente Avaliações de Impacto Ambiental independentes (incluído o impacto binacional no caso do pior acidente) e que seja submetida a consulta pública, pois são nossas sociedades que assumirão seus custos e suas consequências negativas.

Firmam a presente carta com a AAB (Articulação Antinuclear Brasileira) e a MARA (Movimento Antinuclear da Republica Argentina) as seguintes organizações brasileiras e argentinas:

Brasileiras:

ABREA – Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto

ACPO – Associação de Combate aos Poluentes – Santos, São Paulo

AMAR – Associação de Defesa do Meio Ambiente de Araucária – Paraná

ANTPEN – Associação Nacional dos Trabalhadores e Vítimas da Produção de Energia Nuclear

Articulação Comboniana de Direitos Humanos.

ASSA – Associação de Saúde Socioambiental – Santos, São Paulo

Associação Indígena da Aldeia Serrote dos Campos de Itacuruba – Pernambuco

Associação Movimento Sócio-Ambiental Caminho das Águas – Itu, São Paulo

Centro de Direitos Humanos de Formoso do Araguaia – Tocantins

Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo

CERSA – Comitê de Energia Renovável do Semiárido
Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos
CNTU – Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários

Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil

Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduino

Comitê Popular de Luta Casa Forte (CPLCF) – Pernambuco

FNE – Federação Nacional dos Engenheiros

GAMBA – Grupo Ambientalista da Bahia

IRPAA – Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – Itu, São Paulo

Movimento Engenharia pela Democracia – São Paulo

Pastoral da Educação do Regional Sul1 da CNBB

Pastoral Fé e Política da Arquidiocese de São Paulo

PROAM – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental

SAPÊ- Sociedade Angrense de Proteção Ecológica

SEESP – Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo

Argentinas:

Asamblea No Nuclear de Viedma y Patagones

Asamblea Rawson Playa No a la Megaminería.

Asamblea Riojana Capital.

Asamblea de Vecinos Autoconvocados de Viedma y Patagones

Asamblea x la Tierra y el Agua de Las Grutas

Asociación Civil Pro Eco Grupo Ecologista

BIOS Argentina

Campus Córdoba del Right Livelihood College (Colegio de los Premiados con el Nobel Alternativo), Facultad de Psicología, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina.

FUNAM, Fundación para la defensa del ambiente, Argentina.

Movimiento Antinuclear del Chubut (MACH)

MAR – Movimiento Antinuclear Rionegrino

Movimiento Antinuclear Zarate – Campana.

RENACE – Red Nacional de Acción Ecologista

RED ORG. MARCHA PLURINACIONAL X EL ÁGUA PARA LOS PUEBLOS

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