Fonte: Carta Capital
Por Chico Whitaker*
O resto do mundo abandona gradativamente a energia nuclear, por conta dos riscos. Por que deveríamos construir mais uma usina?
A terceira usina nuclear planejada pela ditadura em Angra dos Reis transformou-se numa novela sem fim. As obras, interrompidas nos anos 1980, foram reiniciadas em 2010 e após vários percalços novamente interrompidas em 2016, por dificuldades financeiras do governo e pela descoberta de corrupção na Eletronuclear. Seu então presidente, o almirante Othon Pinheiro da Silva, foi condenado a 43 anos de prisão, pena que por razões de idade e saúde tem sido cumprida no seu domicilio.
Vem aí, tudo indica, um novo capítulo. Empresas russas e chinesas se oferecem para financiar a construção. E o almirante ressurge com cores mais favoráveis, na mídia e em redes sociais, como um herói nacional injustiçado, que teria sido derrubado em razão de suas atividades ligadas à soberania nacional (tecnologias estratégicas, submarinos nucleares e mesmo a bomba atômica sonhada pelos militares). Há até quem acredite que por trás da sua condenação estejam os mesmos interesses estrangeiros que ajudaram a derrubar Dilma Rousseff.
É necessário, no entanto, mantermos os olhos bem abertos: não é possível aceitar uma simples retomada da obra de Angra 3. Seu projeto só foi autorizado em 2010 graças a uma gravíssima irresponsabilidade funcional de nossas autoridades, entre elas o almirante, que criou um enorme risco para os moradores da região de Angra e das duas maiores capitais brasileiras. Mas muito pouca gente sabe.
Sejamos claros: trata-se da possibilidade de catástrofes que pesarão sobre muitas gerações. No momento em que alguns relativizam o histórico criminal do almirante, temos o dever de relembrar fatos.
Para a retomada da construção de Angra 3, no segundo governo Lula, era preciso um novo licenciamento. Os técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) elaboraram então em torno de 90 pareceres sobre os diferentes aspectos a considerar.
Um desses pareceres levantava um problema: o projeto da usina fora elaborado na década de 1970, anteriormente aos dois grandes acidentes nucleares de 1979, em Three Miles Island, Estados Unidos, e 1986, em Chernobyl, União Soviética, que revelaram deficiências nos projetos das usinas construídas até então.
Segundo o parecer, o projeto de Angra 3 deveria passar pelo crivo das normas de segurança editadas pela Agência Internacional de Energia Atômica após esses dois acidentes. O parecer foi elaborado por um dos engenheiros de segurança da CNEN, revisado por um colega de mesmo escalão e especialidade, como é a norma, e aprovado pelo chefe de ambos.
As novas normas de segurança visavam evitar ou ao menos mitigar os efeitos desses chamados “acidentes severos”, antes considerados impossíveis. Estes, provocados por “falhas múltiplas” encadeadas, podem levar à fusão do reator e à sua explosão, com disseminação de partículas radioativas no ambiente, e configurar uma verdadeira catástrofe social, econômica e ambiental, com efeitos danosos em grandes territórios, por décadas e mesmo séculos.
Em Three Miles Island o reator não chegou a fundir inteiramente e explodir, mas no acidente de Chernobyl há estudos que contabilizam cerca de um milhão de vítimas ao longo dos anos seguintes. Entre outros devastadores efeitos, os 48 mil habitantes de Pripyat (hoje uma cidade-fantasma) tiveram de deixar às pressas, para sempre, suas casas e tudo o que possuíam.
O território num raio de 30 quilômetros foi interditado por 300 anos. E a nuvem radioativa então expelida cobriu toda a Europa. O Brasil, inclusive, chegou a importar, sem saber, leite radioativo da Irlanda.
Para avaliar o poder mortífero da disseminação radioativa, basta relembrar o “maior desastre radiológico do mundo com fontes radioativas” ocorrido em 1987 em Goiânia, no Brasil: apenas 19 gramas de césio-137 (uma das partículas espalhadas pela nuvem de Chernobyl), retiradas de um aparelho de radioterapia abandonado, foram suficientes para causas quatro mortes nos primeiros dias e até hoje provocam amputações e mortes de contaminados.
Ou seja: o bom senso exigiria levar aquele parecer em consideração, até para não duplicar o risco de Angra 2, construída com um projeto similar. Mas a revisão atrasaria a obra, poderia levar à rescisão do contrato por mudança de objeto e talvez à sua inviabilização, por aumento de custos. Vale recordar: naquele momento, a Andrade Gutierrez, contratada para a obra, repassava recursos ao almirante.
O que fez a CNEN? Engavetou o incômodo parecer. E a obra foi licenciada, para a alegria de muitos.
Claro, não foi assim tão simples. Segundo a IstoÉ de 11/06/2010, o clima dentro da CNEN passou a ser “de caça às bruxas”, e o tema, proibido. O Ministério Público Federal, em investigação aberta pelo procurador de Angra em 30 de setembro de 2009, que chegou a 400 páginas, concluiu pela necessidade de revisão do projeto. Também suas determinações foram desconsideradas pela CNEN e pela Eletronuclear.
O autor do parecer, “encostado”, não tinha sienciado: em fevereiro de 2010 publicou um artigo no Jornal do Brasil, no qual denunciava o “projeto anacrônico” de Angra 3. E e outro em março, depois de uma réplica da CNEN, insistindo em seu caráter “obsoleto”, o que o levou inclusive a sofrer um processo administrativo. O apoio da Associação de Fiscais da Energia Nuclear o salvou da demissão.
Pouco depois, em 2011, um terceiro “acidente severo”, em Fukushima, no Japão, evidenciou novamente o perigo latente nas usinas nucleares. Três reatores fundiram e explodiram, em dias seguidos. Centenas de milhares de habitantes foram evacuadas num raio de 40 quilômetros. Chegou-se a temer ser necessário evacuar Tóquio. E a luta do Japão frente às consequências do acidente não está perto de terminar.
A Alemanha, depois de Fukushima, decidiu fechar suas usinas nucleares, iniciando por aquelas de maior risco, como a de Grafenrheinfeld, similar a Angra 2 e 3. No Brasil, ao contrário, o acidente não suscitou maiores questionamentos.
Segundo o Relatório Anual sobre o Estado da Indústria Nuclear de 2017, o aumento dos custos por exigências de segurança leva essa indústria ao declínio. Atenção: como não conseguem novos contratos nos países ricos, os abutres do lobby nuclear internacional têm adotado a estratégia de associar-se a interesses de países do capitalismo periférico, para a continuidade do seu lucrativo negócio.
Nesse contexto, o processo do MP em Angra não mereceria uma urgente atenção de nossas instituições? Independentemente de opiniões sobre o uso da energia nuclear para produzir eletricidade, uma revisão do projeto de Angra 3, à luz dos novos conhecimentos sobre a segurança das instalações nucleares, seria um passo essencial frente ao incomensurável perigo dessa empreitada. E à angústia dos que dele têm consciência.
* Integrante da Comissão Brasileira Justiça e Paz