Publicado em 23 de fevereiro de 2014 na Carta Maior.
James Hansen foi o principal climatólogo da NASA a alertar para as alterações climáticas. Agora tornou-se defensor da energia nuclear.
Daniel Tanuro
O reconhecido cientista norte-americano James Hansen converteu-se à energia nuclear. Juntamente com outros três especialistas conhecidos em matéria de aquecimento global, o antigo climatólogo chefe da NASA assinou uma carta aberta dirigida “Às pessoas que influenciam a política ambiental, mas que se opõem à energia nuclear”.
O texto foi publicado integralmente no New York Times em novembro de 2013/1, e disse particularmente o seguinte:
“As renováveis como o vento, a solar e a biomassa desempenharão sem dúvida um papel numa futura economia da energia, nas essas fontes energéticas não se podem desenvolver com a rapidez suficiente para fornecer uma eletricidade barata e fiável à escala requerida pela economia global.
Mesmo que teoricamente fosse possível estabilizar o clima sem energia nuclear, no mundo real não há nenhuma via credível para uma estabilização do clima que não comporte um papel substancial para a energia nuclear. (…) Não haverá solução tecnológica milagrosa, mas chegou a hora de aqueles e aquelas que tomam a sério a ameaça climática se pronunciarem a favor do desenvolvimento e da dispersão de instalações de energia nuclear mais seguras (…).
Com o aquecimento do planeta e as emissões de dióxido de carbono que aumentam mais rapidamente do que nunca, não podemos permitir-nos virar as costa a qualquer tecnologia que tenha o potencial de suprimir grande parte das nossas emissões de carbono. Muitas coisas mudaram, desde a década de 1970. Chegou a hora de apresentar um enfoque novo da energia nuclear no século XXI. ” (…)
Hansen, Lovelock, Monbiot…
Este texto é típico das “alternativas infernais” que alguém enfrenta quando se mantém dentro do marco capitalista. Não vou duvidar das motivações de James Hansen e dos seus colegas: a sua inquietação, face ao grave perigo de alterações climáticas, não é fingida e baseia-se num conhecimento científico profundo. Hansen, em particular, é conhecido por ter feito soar o alarme, já em 1988, perante uma comissão do Congresso dos EUA. Desde então, vem repetindo que há que levar aos tribunais os patronos do sector da energia fóssil por “crimes contra a humanidade e contra o meio ambiente”. No passado mês de abril, Hansen inclusivamente deixou o seu cargo na NASA para se dedicar inteiramente à militância climática. Portanto, não é uma casualidade que a “carta aberta” seja dirigida especialmente aos defensores do meio ambiente…
Não é a primeira vez que investigadores científicos comprometidos trocam de opinião no que respeita à energia nuclear, argumentando que o átomo é um “mal menor” face às catástrofes que trará consigo o aquecimento planetário. Outro antigo colaborador da NASA, James Lovelock, o pai da “hipótese Gaia”, fez o mesmo há alguns anos.
Um caso um pouco diferente, mas significativo, é o de George Monbiot. Este era mais militante que investigador, mas as suas crónicas em The Guardian eram conhecidas pelo seu rigor científico e a sua conversão ao átomo gerou muito ruído. Seria pedante tratar com desprezo estas tomadas de posição a favor da energia nuclear, pois teria que ver nelas um convite a não iludir o facto de que a transição energética para um sistema “100% renováveis” constitui efetivamente um propósito que encerra dificuldades inusitadas, quase sempre subestimadas inclusivamente em publicações sérias e de qualidade.
O desafio da transição
Algumas semanas antes da Cimeira de Copenhaga sobre o clima, em 2009, dois cientistas norte-americanos publicaram em Scientific American um artigo em que afirmam que a economia mundial poderia abandonar os combustíveis fósseis em 20 ou 30 anos. Para isso, “bastaria” produzir 3,8 milhões de aero-geradores 5 megawátios, construir 89.000 centrais solares fotovoltaicas e termodinâmicas, equipar os telhados dos edifícios com painéis fotovoltaicos e dispor de 900 centrais hidroelétricas/2… O problema das projeções deste tipo é que quando pretendem resolver o problema da transição, na realidade, escamoteiam-no. Efetivamente, a questão não consiste em imaginar em abstrato um sistema energético “100% renováveis” (que é evidentemente possível), mas em traçar o caminho concreto para passar do sistema atual, baseado em mais de 80% nas energias fósseis, para um sistema baseado exclusivamente no vento, no sol, na biomassa, etc.
Se tivermos em conta dois imperativos: em primeiro lugar, que as emissões devem ser reduzidas entre 50 e 85% daqui até 2050 (de 80 a 95% nos países “desenvolvidos”) e, em segundo lugar, que esta redução deve começar o mais tardar em… 2015, e para que o plano de transição não seja pura ficção, os autores do artigo do Scientific American teriam que ter respondido à seguinte pergunta: como produzir 3,8 milhões de aero-geradores, construir 89.000 centrais solares, fabricar painéis fotovoltaicos para equipar os telhados das casas e edificar 900 represas sem deixar de respeitar os dois imperativos citados, quando o sistema energético depende 80% dos combustíveis fósseis cuja combustão comporta inevitavelmente a emissão de dióxido de carbono e outros gases de efeito de estufa?/3
Produzir menos?
Esta pergunta não tem 36 respostas possíveis, mas só uma: é necessário que o aumento das emissões que derivem dos investimentos suplementares requeridos para levar a cabo a transição energética se compense mediante uma redução suplementar das emissões noutros sectores da economia. É certo que uma parte substancial deste objetivo pode e deve ser alcançada à base de medidas de eficiência energética. Sem dúvida, isto não permite obviar o problema já que, na maioria dos casos, um aumento da eficiência também requer investimentos e necessita de energia que é fóssil, em 80%, e portanto será fonte de emissões suplementares que deverão compensar-se mediante outras reduções e assim sucessivamente.
Quando se examinam as projeções de sistemas com 100% de renováveis, constata-se que o erro consistente em saltar por cima do problema concreto está muito estendido. Para melhorar a eficiência do sistema energético, o relatório Energy Revolution de Greenpeace, por exemplo, prevê, entre outras coisas, transformar 300 milhões de habitações em casas passivas nos países da OCDE. Os autores calculam a redução de emissões correspondente… mas não têm em conta o aumento das emissões causado pela produção dos materiais isolantes, as janelas de vidro duplo, os painéis solares, etc.
Por outras palavras, a sua percentagem de redução é peso bruto, não peso líquido/4. Olhe-se por onde se olhar o problema, chega-se sempre à mesma conclusão: para respeitar os imperativos da estabilização do clima, os enormes investimentos da transição energética deverão vir através duma redução da procura final de energia, sobretudo no começo e pelo menos nos países “desenvolvidos”. Que redução? As Nações Unidas avançam com o número de 50%, na Europa, e 75%, nos EUA/5. É uma enorme percentagem e aí é onde dói, pois uma diminuição do consumo de semelhante magnitude não parece realizável sem reduzir sensivelmente, e durante um período prolongado, a produção e o transporte de mercadorias… quer dizer, sem algum “decrescimento” (em termos físicos, não em pontos do PIB).
Antagonismo
Nem dizer que este descrescimento físico é antagónico com a acumulação capitalista que, por muito que se meça em termos de valor, é dificilmente concebível sem algum incremento quantitativo de materiais transformados e transportados. A “dissociação” entre aumento do PIB e o fluxo de materiais só pode ser relativa, o que significa que neste ponto se manifesta de novo a incompatibilidade fundamental entre o produtivismo capitalista e os limites do planeta/6. Nesta incompatibilidade, cada vez mais evidente, com que James Hansen, James Lovelock, George Monbiot e outros tratam de iludir, em nome da urgência, quando reclamam o resgate da energia nuclear. É lamentável e indigno do seu rigor científico que o façam banalizando os riscos e sobretudo afirmando gratuitamente que as tecnologias “do século XXI” (quais?) permitirão garantir una energia nuclear segura e a reciclagem dos resíduos que produz.
“No mundo real [capitalista] não há nenhuma via razoável para uma estabilização do clima que não outorgue um peso substancial para a energia nuclear”, diz a carta aberta de Hansen e demais subscritores. Esta afirmação é completamente falsa: para triplicar o peso da energia nuclear no consumo elétrico até 2050 (com o qual chegaria a representar tão só um pouco mais de 6%!) haveria que construir quase uma central por semana em todo o mundo durante 40 anos. À parte dois perigos demonstrados, no caso de Fukushima, nos encontraríamos então com um sistema elétrico híbrido, já que obedeceria a duas lógicas opostas: centralização e esbanjamento do átomo, descentralização e eficiência com as renováveis. Não é uma “via razoável” a que propõem Hansen e os seus colegas, mas uma impossibilidade técnica. Não conduziria mais do que a um beco sem saída fatal, pois combinaria aquecimento e radiações.
Geoengenharia
A mesma negativa a opor-se ao capitalismo traduz-se no caso outros cientistas na resignação perante os projetos de geo-engenharia. Inclusivamente, esta é mencionada nos relatórios do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre as Mudanças Climáticas (GIECC): o resumo do primeiro tomo do 5º relatório assinala que “se propuseram métodos com vista a alterar deliberadamente o clima terrestre para travar a alteração climática, a chamada geoengenharia”.
Os autores assinalam que estes métodos “podem ter efeitos colaterais e consequências a longo prazo à escala mundial”. À primeira vista, esta prudência parece razoável. Sem dúvida, mesmo que prudente, a menção da geo-engenharia pelo GIECC é sumamente inquietante. Significa que certas receitas de aprendizes de feiticeiro começam a ser consideradas eventualmente realizáveis.%u228%u228 Certamente que nos bastidores se multiplicam investigações e experiências, às vezes até de forma ilegal. Bill Gates e outros investidores consagram milhões de dólares para esta questão.
O seu argumento é muito simples: conscientes de que um capitalismo sem crescimento é um oxímoro, concluem que não se alcançarão os objetivos de redução das emissões de gases com efeito de estufa e posto que a urgência climática impõe fazer algo, seja o que for, chegará a hora da geo-engenharia e abrir-se-á um imenso mercado. Cientistas pouco escrupulosos, financeiros, petrolíferas, homens de negócios de todas a espécie, todos esfregam as mãos sem pensar nas consequências… pelo menos que as consequências façam parte do plano.
Não sou adepto das teorias da conspiração, mas se pensarmos no dia em que algumas grandes empresas que possuem as patentes respectivas controlem a rede de espelhos espaciais gigantes sem a qual a temperatura da Terra subiria rapidamente 6°C, não há dúvida que o seu poder político seria imenso e que seria mais difícil do que nunca arrebatá-lo. A mesma lógica do capital leva-o a sonhar com um termóstato terrestre cujo controle absoluto lhe permitiria cobrar o seu dízimo à população do planeta.
A única vía credível
Há que partir do que foi dito pelo próprio James Hansen em numerosas ocasiões: o principal obstáculo para salvar o clima são as grandes empresas que beneficiam do sistema energético fóssil. Trata-se de um obstáculo colossal. Este sistema conta com milhares de minas de carvão e centrais térmicas de carbono, mais de 50.000 campos petrolíferos, 800.000 km de gaseodutos e oleodutos, milhares de refinarias, 300.000 km de linhas de alta tensão… O seu valor calcula-se entre 15.000 e 20.000 biliões de dólares (quase um quarto do PIB mundial).
Todos esses equipamentos, financiados a crédito e concebidos para durar 30 ou 40 anos, deveriam ser desmontados e ser substituídos nos 40 anos subsequentes, na maioria dos casos antes de estarem amortizados. Mas isso não é tudo: as companhias de energias fósseis deveriam renunciar a explorar os quatro quintos das reservas demonstradas de carvão, petróleo e gás natural que figuram no ativo dos seus balanços…
A única “via razoáel” para uma estabilização do clima é a que passa pela expropriação das companhias de energias fósseis e das finanças: os “criminosos climáticos” justamente denunciados por Hansen. Transformar a energia e o crédito em bens comuns é a condição necessária para a elaboração de um plano democrático com vista a produzir menos, para cobrir as necessidades, de forma descentralizada e partilhando mais.
Este plano deveria comportar especialmente a supressão das patentes no âmbito da energia, a luta contra a obsolescência programada dos produtos, o fim da primazia do automóvel, uma extensão do setor público (particularmente para o isolamento dos edifícios), a reabsorção do desemprego mediante uma redução generalizada e drástica da jornada laboral (sem redução do salário), a supressão das produções inúteis e nocivas como as armas (com recolocação dos trabalhadores), a localização da produção e a substituição da agro-indústria globalizada por uma agricultura campesina de proximidade.
É mais fácil dizê-lo que fazê-lo, mas o primeiro que há que fazer é dizê-lo. E impulsionar as mobilizações sociais massivas indispensáveis para fazer desta utopia uma utopia concreta.
* Daniel Tanuro é engenheiro agrónomo e jornalista, autor do livro “O Impossível Capitalismo Verde“. Publicado em Viento Sur. Tradução: António José André
Notas:
1/ http://dotearth.blogs.nytimes.com/2… influencing-environmental-policy-but-opposed-to-nuclear-power/
2/ “A plan to power 100% of the Planet with renewables”, Mark Z. Jacobson and Mark A. Delucchi, Scientific American, 26 de outubro de 2009 | 188.
3/ Aqui pronunciamo-nos sobre a pertinência do plano em questão nos seus distintos aspetos. No entanto, esta enumeração dos investimentos necessários está incompleta, como assinalam os autores, para além dos milhões de aerogeradores, etc. Trata-se de conceber um novo sistema de transmissão susstituindo uns 300.000 km de linhas elétricas de alta tensão por uma rede “inteligente” adaptada à intermitência das energias renováveis.
4/ Energy Revolution, A Sustainable World Energy Outlook. Greenpeace, GWEC, EREC, 2012.
5/ Nações Unidas, Estudo Económico e Social Mundial 2011.