Publicado em 02 de março de 2012 no Der Spiegel.
Wieland Wagner
Quase um ano após o desastre de Fukushima, 52 das 54 usinas nucleares do Japão estão fechadas. A explosão do reator destruiu a confiança da população na energia nuclear. Mas o lobby atômico – e as necessidades industriais do país – podem impedir uma possível extinção desse tipo de usina.
Um vento gelado sopra pelo centro de Rikuzentakata. Em pé diante do que resta da prefeitura, o prefeito Futoshi Toba, 47, olha para uma cena de total desolação. Há apenas algumas ruínas de aço e concreto pontilhando o cenário: uma escola, um hospital, um correio e um supermercado. Ao longo da costa, quatro torres de iluminação parecem sentinelas fantasmagóricas. O estádio esportivo que costumavam iluminar foi praticamente engolido pelo mar.
Quase um ano atrás, Toba estava no mesmo lugar quando a terra tremeu, na tarde do dia 11 de março de 2011. Ele quis correr para casa imediatamente para encontrar sua mulher, mas continuou a postos. Ele preferiu garantir o máximo de segurança aos habitantes enquanto uma onda de tsunami de 14 metros estava correndo para a costa.
Quase um décimo dos 23.000 habitantes de Rikuzentakata morreu no desastre. Bairros inteiros da cidade foram transformados em um atoleiro cinza.
Tratores formaram pilhas com os destroços deixados pela tsunami. Há quase um ano, os sobreviventes vêm limpando o que restou de sua cidade -e separando meticulosamente a madeira do concreto, os fios elétricos e os carros destruídos.
O terremoto e a tsunami subsequente tomaram as vidas de cerca de 20.000 pessoas, inclusive a mulher de Toba, Kumi. Ainda assim, até hoje, a memória dessa tragédia é superada por outro desastre -o acidente nuclear em Fukushima Daiichi. Dezenas de milhares de pessoas desde então tiveram que ser evacuadas da região contaminada.
Fukushima mudou significativamente a vida no Japão. Parece que a nação insular terá que enfrentar esse desafio coletivo com a mesma disciplina e estoicismo com o qual aguentou seu declínio econômico gradual nas últimas duas décadas.
O primeiro-ministro japonês, Yoshihiko Noda, que substituiu o infeliz administrador da crise, Naoto Kan, em setembro, já começou a estabelecer limites: em dezembro, ele anunciou que os reatores atingidos em Fukushima alcançaram um “estado de fechamento frio, então o acidente agora está sob controle”.
É isso que o governo em Tóquio gostaria que todos acreditassem, e esta é particularmente a opinião do Ministério da Economia Indústria e Comércio (Meti), responsável pela decisão de abrir ou fechar as usinas nucleares.
Mas na realidade, o Japão está no meio de uma crise de política energética de uma magnitude que nenhuma nação industrializada jamais enfrentou.
De fato, 52 dos 54 reatores nucleares do país foram fechados. Desde o desastre, uma após a outra, as usinas foram submetidas a testes de estresse e reparos. Ainda assim, em muitos casos, os prazos que foram estabelecidos para este trabalho foram estendidos.
Foi um alerta para as pessoas do mundo todo: o Japão, que dependeu pesadamente da energia nuclear por décadas, está no processo -apesar de contra a vontade- de eliminar seu setor de energia atômica. Contudo, em forte contraste com a Alemanha, onde a chanceler Angela Merkel propôs uma transição histórica para fontes de energia renováveis após o desastre de Fukushima, a eliminação atômica japonesa está em grande parte acontecendo sem um debate político.
O pragmatismo com o qual os japoneses estão discretamente deixando a energia nuclear marca as profundas diferenças culturais em relação aos alemães, que têm fama de abraçar debates ideológicos e adotar um tom paternalista com o resto do mundo. É possível inclusive que os japoneses convertam mais radicalmente seu país em uma zona livre de energia nuclear -assim como se tornaram os campeões mundiais de tecnologias eficientes em energia após a crise do petróleo, no início dos anos 70.
Até o ano passado, tal mudança parecia impensável. Na época, o Japão respondia a um terço de suas necessidades energéticas com a energia nuclear. Tóquio estava planejando construir outras 14 usinas atômicas até 2030.
O Japão, contudo, ainda não está falando oficialmente em acabar com a energia nuclear. A “Genpatsu mura” – que literalmente quer dizer “aldeia atômica”, como é conhecida no Japão a aliança profana de empresas e canais da mídia – ainda não capitulou. O lobby pró-nuclear só está esperando o pior passar.
O primeiro-ministro, Noda, está querendo que todos os reatores aprovados no teste de estresse sejam rapidamente religados à rede. Apesar de planejar introduzir novas leis que limitariam a operação de usinas nucleares a 40 anos, em casos excepcionais esta lei permitiria uma sobrevida de 60 anos.
Noda também apoia a exportação da tecnologia nuclear japonesa. O Ministério da Educação, Ciência e Cultura forneceu fundos para escolas, mesmo após o acidente nuclear, para que jovens japoneses possam aprender sobre as supostas bênçãos da energia nuclear. Esta é uma das peculiaridades políticas desta nação que sempre busca harmonia e abomina acima de tudo mudanças abruptas de curso. O fato, contudo, é que a batalha para alcançar um novo consenso de energia começou há muito tempo. Os oponentes mais fortes da energia nuclear do Japão não são seus grupos ambientais notoriamente fragmentados, mas sim as prefeituras rurais, que emergiram como as forças mais influentes contra a volta da energia nuclear.
Desde Fukushima, esses governos locais não puderam mais ignorar os temores de seus habitantes. Os subsídios geralmente generosos de Tóquio não estão conseguindo convencê-los a reiniciar os reatores nucleares fechados. Mesmo que o governo garanta que essas instalações são seguras, as autoridades, como o governador de Niigata, Hirohiko Izumida, advertiram que não necessariamente concordam em colocá-las de volta em operação. O choque foi muito profundo entre os que suportaram o pior do desastre de Fukushima.
Kenta Sato, 29, sócio de uma empresa de soldagem, foi evacuado em maio com 6.500 moradores da cidade de Iitate. Desde então, ele está morando com a mãe em um apartamento alugado a quase uma hora de distância, na capital de Fukushima. Seu pai e avó tiveram que ser alojados em outro local.
Sato entra no carro para ser levado para Iitate. Ele quer ver se tudo está em ordem e alimentar os três cães que ficaram para trás. Ele não veste roupas protetoras -só um casaco de frio, calças jeans e sapatos de couro pontudos. De qualquer forma, ele não poderia escapar da radiação: mesmo na cidade supostamente segura de Fukushima, seu instrumento de medição estava mostrando dois microsieverts naquele dia.
Iitate é uma cidade fantasma. O lar dos idosos é um dos poucos prédios com luzes acesas. O governo não quis forçar os idosos a passarem pelo sacrifício da evacuação. Eles ficaram para trás na área contaminada -junto com os enfermeiros. “Se nossos políticos fossem honestos, eles isolariam toda a área de Iitate para sempre”, diz Sato. “Então poderíamos começar uma nova vida em outra área, não contaminada”.
Ainda assim, o prefeito da comunidade está ocupado supervisionando as operações de limpeza da cidade. Em toda parte, vê-se grupos de trabalhadores vestindo roupas protetoras e máscaras brancas. Eles removem o solo contaminado dos jardins e usam mangueiras de alta pressão para lavar as paredes dos prédios. Eles parecem padres shinto celebrando um ritual de limpeza.
Mas Sato não acredita na descontaminação. “Eles só estão lavando o césio para o rio”, diz ele.
Mas a radioatividade está se espalhando de formas inesperadas. Um complexo habitacional novinho em folha em Nihonmatsu, perto de Fukushima, foi recentemente submetido a testes e se provou contaminado. Os operários tinham construído a fundação de concreto usando materiais de uma pedreira localizada perto da usina nuclear atingida. Desde então, uma série de projetos de construção foram suspensos -até em Tóquio. Cidadãos preocupados estão insistindo que todo o concreto seja testado com um contador Geiger.
O que primariamente preocupa os japoneses, porém, é o fornecimento de alimentos. Primeiro surgiu nas lojas do país carne de gado que tinha se alimentado de capim contaminado. Depois, arroz de uma fazenda próxima a Fukushima que tinha níveis elevados de césio, apesar das agências do governo terem dito que era seguro comer o grão.
Os japoneses estão profundamente apreensivos. Koichi Kato, que dirige uma cooperativa de consumidores em Tóquio, sempre orgulhou-se de oferecer seus mais de 300.000 membros peixe fresco, carne e leite do Norte do Japão. Mas agora, muitos consumidores só compram o que foi testado. Em setembro, Kato encomendou a compra de quatro aparelhos especiais para medir níveis de radiação nos alimentos.
“De fato, a gigante energética Tepco ou o governo deveriam assegurar a segurança dos alimentos”, diz ele, “mas pode esquecer”.
Mesmo que, como muitos acreditam, o Japão volte a operar uma série de reatores desligados, após permitir um intervalo diplomático, os planos ambiciosos do governo de construir novas usinas nucleares não são mais politicamente viáveis após o desastre de Fukushima. Tampouco os sacrifícios que os japoneses estão tendo que fazer devem mudar isso. Eles terão que se preparar para medidas de contenção neste verão. Durante a estação quente e úmida, os aparelhos de ar-condicionado nos escritórios e residências normalmente operam quase em capacidade máxima.
No ano passado, o governo já lançou um apelo para que o país reduzisse seu consumo de energia. Foram instituídas multas para empresas que excedessem certas quotas. Isso se provou desnecessário, contudo, pois os japoneses, disciplinados, voluntariamente colocaram várias ideias em prática: as fábricas passaram a abrir no final de semana, e as famílias esfriaram suas casas com ventiladores no lugar dos aparelhos de ar-condicionado de alto consumo. Agora, durante o o inverno, muitos servidores públicos estão se embrulhando em cobertores de lã para se manterem aquecidos nos escritórios quase sem aquecimento.
O fechamento de quase todos os reatores nucleares forçou os fornecedores de energia a reabrirem usinas a gás e a óleo. Empresas como a Nippon Steel e a fabricante de papel Oji estão operando suas usinas em parte com geradores próprios -e entrando em um novo ramo de negócios: um número crescente de firmas estão dando a energia excedente para a rede pública e assim competindo com os monopólios regionais, como a Tokyo Electrical Power Company ( Tepco), operadora dos reatores acidentados de Fukushima.
O Japão, contudo, ainda é a terceira nação mais industrializada do mundo e tem que pagar um alto preço para importar o óleo e o gás que está queimando para substituir a energia atômica. Esta é uma das razões para o resultado comercial japonês caiu para o vermelho em 2011 pela primeira vez em 31 anos.
O Japão, porém, não poderá garantir o fornecimento energético de longo prazo com suas usinas energéticas convencionais. Desde o último verão, mais de 10 dessas usinas tiveram que ser temporariamente fechadas devido a defeitos. De fato, a eliminação das usinas nucleares ainda não é um fato consumado, e o poderoso lobby nuclear no Japão não perdeu as esperanças de um renascimento para sua tecnologia.
Mas a resistência está começando a crescer em suas próprias fileiras. Shigeaki Koga, 56, foi um de centenas dos funcionários do Meti que apoiaram fortemente a indústria nuclear. Mas Fukushima fez dele um rebelde.
Até o último outono, Koga era membro da elite do Meti. Aí ele propôs publicamente reformar o setor de energia corrupto do Japão e desmontar a Tepco. Seu plano sugere que o governo peça desculpas pelo desastre nuclear e inicie uma campanha para convencer o povo japonês a fazer sacrifícios em apoio a uma transição audaciosa para outras fontes de energia. A resposta veio por telefone. “Pare”, disse com raiva o secretário pessoal do ministro. De acordo com Koga, até o próprio ministro o pressionou a renunciar. Koga traiu o espírito corporativo do ministério. “Se há uma coisa que os burocratas japoneses não suportam é crítica”, disse ele.
É certo que várias posturas em relação à energia nuclear foram modificadas após o desastre. Mas a Tepco teve permissão para continuar. A partir de abril, a empresa planeja aumentar drasticamente o preço da eletricidade para grandes consumidores. Ainda assim, é duvidoso que a empresa possa evitar a estatização, pois enfrenta pedidos de indenização que chegam a vários trilhões de ienes.
Enquanto isso, na comunidade devastada de Rikuzentakata, o prefeito Toba está brigando com os burocratas na capital sobre os fundos de reconstrução. Por meses, Toba lutou para que o muro protetor de tsunami de sua cidade fosse substituído por uma estrutura mais alta. Mas em vez dos 15 metros que pediu, Tóquio aprovou 12,5.
Hoje, Toba tem que recorrer a planos totalmente diferentes para o futuro de Rikuzentakata: fazê-la muito menor e mais distante do mar. Acredita-se que levará cinco anos para a barreira contra tsunami ser erguida. “Então, poderemos voltar a viver aqui”, diz Toba. Neste sentido, pelo menos, os sobreviventes de Rikuzentakata estão um passo à frente dos de Fukushima.