Por Joaquim Francisco de Carvalho
Na década de 1970, quando surgiram na extinta União Soviética o Reator Bolshoy Moshchnosty Kanalny (RBMK), a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) avaliava que os acidentes por perda de refrigeração com equipamentos desse tipo seriam praticamente impossíveis de acontecer (ver AlEA Bulletin vol. 25, nº 2, p. 51).
Apesar da avaliação da AIEA, há 25 anos (abril de 1986) acontecia em Chernobyl, precisamente com um reator RBMK e por perda de refrigeração, o que, na época, foi considerado mais grave desastre nuclear da história. Então, a AIEA previa que um acidente daquela magnitude só poderia acontecer a cada século.
Coincidentemente, 25 anos depois (março de 2011), acontecia em Fukushima outro acidente da mesma gravidade.
Acidentes nessa área têm dimensões que outros não têm. Eles se propagam pelo espaço e pelo tempo
O acidente de Three Mile Island, ocorrido nos Estados Unidos sete anos antes do de Chernobyl (1979), também foi muito grave, mas a radiação permaneceu no interior da envoltória de aço que abriga o reator onde ficam os elementos combustíveis, nos quais se processam as reações de fissão do urânio, que produzem o calor, que vai para os geradores de vapor, que acionam os geradores de eletricidade.
A gravidade da catástrofe de Chernobyl vem de que os reatores não ficavam em envoltórias de aço, mas sim em construções pouco mais reforçadas do que edifícios de indústrias químicas.
A central dispunha de quatro reatores de canal, do tipo RBMK, refrigerados a água leve e moderados a grafita. Os elementos combustíveis eram feixes de tubos (ou varetas) de zircaloi (liga de zircônio), preenchidos com pastilhas de óxido de urânio levemente enriquecido.
Cada elemento era alojado num tubo de pressão (ou canal), também de zircaloi, numa disposição mais ou menos semelhante à dos reatores canadenses do tipo Candu. Os canais, por sua vez, eram embutidos em prismas (ou blocos) de grafita, de secção quadrada.
A carga de combustível era de 192 toneladas de óxido de urânio.
Tudo indica que houve falha no sistema primário de refrigeração, que injeta água pressurizada nos canais. Com isso, a temperatura das varetas subiu rapidamente para cerca de 2.8000 C, rompendo-as.
Supõe-se que, em contato com as varetas, naquela temperatura, a água ainda existente nos canais decompôs-se termicamente, liberando hidrogênio. Ao mesmo tempo, o vapor, em contato com a grafita, também se decompôs e liberou mais hidrogênio. Houve então uma explosão deste gás, que rompeu a tampa do vaso do reator e lançou na atmosfera gases e nuvens de vapor, carregando produtos de fissão tais como cobalto-60, estrôncio-90, iodo-13l e césio-137, além de actinídeos, como o netúnio-237 e os isótopos de plutônio de pesos atômicos 239, 240 e 241.
Para agravar a situação, a grafita – cuja estrutura cristalina é instável quando submetida a altas temperaturas e a intensos fluxos de nêutrons – deve ter “queimado” em contato com o ar, engrossando as nuvens que veiculavam os produtos de fissão. Essas nuvens elevaram-se a mais de 1.500 metros de altura, sendo colhidas pelos ventos dominantes e conduzidas na direção da Inglaterra, Irlanda, Alemanha, Holanda, França e países escandinavos.
Os defensores emocionais da energia nuclear afirmam que os acidentes de Chernobyl e Fukushima só aconteceram porque – no primeiro caso – houve uma falha humana e – no segundo caso – ocorreu um tsunami, esquecendo que todo acidente tem uma causa.
Os acidentes Three Mile Island, Forsmark, Tokaimura, Bohunice, Erwin, Mayak e outros, também tiveram causas. Só um leigo, ou alguém movido por pura emoção afirmaria que nunca existirão causas para outros acidentes, seja na França, na Coreia ou em Angra dos Reis. O fato é que as usinas nucleares, como qualquer outra obra de engenharia, são e sempre serão vulneráveis a erros humanos, a desastres naturais, a falhas de projeto e, porque não dizer, a ataques terroristas.
Entretanto os acidentes nucleares têm dimensões que os outros não têm. Eles se propagam pelo espaço (regiões inteiras ficam contaminadas e têm que ser evacuadas e interditadas) e pelo tempo (muitas décadas). Um desastre de avião, por exemplo, atinge os passageiros e, por mais traumático que seja, é um acidente que termina no local e no instante em que acontece. Um acidente em central nuclear apenas começa no instante e no local em que ocorre. Alguns anos depois centenas de pessoas sofrerão males induzidos por exposição a radiações ionizantes, como acontece até hoje com as populações que permaneceram nas cidades próximas a Chernobyl.
Há controvérsias sobre o número de vítimas fatais do acidente de Chernobyl, pois as agências nacionais e internacionais do setor nuclear não divulgam informações confiáveis sobre isso, como, aliás, observa a ex-ministra francesa do Meio Ambiente, Corinne Lepage, em seu livro “La vérité sur le nucléaire”, publicado em junho de 2011, onde ela afirma que as autoridades nucleares de seu país minimizam a gravidade dos acidentes que ocorreram em Saint-Laurent-des-Eaux, Chooz, Blaiais e outros, que contaminaram lençóis freáticos e poderiam ter sido catastróficos – revelando, ainda, que os custos da energia gerada em centrais nucleares são altamente subvencionados pelo estado e que tudo o que é divulgado a respeito disso vem revestido de dissimulações e meias-verdades.
A AIEA calculava que, no acidente, teriam perdido a vida “cerca de 20 a 30 pessoas”, mas atualmente já admite que esse número deve estar em torno de 4.600.
Greenpeace e outras ONGs ambientalistas estimam a área contaminada em 155 mil km2, estendendo-se pela Ucrânia, Bielorrússia e Rússia.
Com base em sua própria vivência, as diversas associações de vítimas do acidente afirmam que mais de 50 mil pessoas já perderam a vida e cerca de 109 mil bielorrussos e mais de 250 mil ucranianos apresentam, com maior ou menor gravidade, sequelas das radiações recebidas, em consequência da catástrofe.
Joaquim Francisco de Carvalho é pesquisador associado ao IEE/USP, foi diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear) e presidiu a comissão consultiva criada pela presidência da República, para avaliar o acidente com o césio 137 ocorrido em setembro de 1.987.